A regra de sub-rogação dos adquirentes de produção rural permanece inconstitucional, mas o entendimento dos Tribunais Inferiores cria nova figura de responsabilidade tributária.
A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade por força das disposições do art. 195 da Constituição Federal. Tratando-se do regime de previdência social, tem por característica intrínseca, o custeio do sistema de assistência social do Estado, utilizando-se da compulsoriedade das contribuições.
Para tanto, se destaca, além da previsão constitucional, sua implementação pela legislação infraconstitucional, no caso, a Lei n. 8.212/91 que traz as regras de organização e custeio da Previdência Social.
No tocante aos contribuintes que desempenham atividade rural, a legislação traz maiores especificações, preservando a igualdade com os trabalhadores urbanos, no entanto, a partir de seu art. 25, a Lei da Previdência Social traz disposições e critérios específicos aplicáveis a contribuição devida pelo empregador rural pessoa física.
Historicamente, na vigência da Emenda Constitucional n. 1/1969 foi promulgada a Lei Complementar n. 11/1971, que criou o primeiro sistema de previdência destinado aos trabalhadores rurais. Este, seria custeado por uma contribuição incidente sobre o valor dos produtos comercializados pelos produtores e por estes recolhida, destinada a um fundo, gerido por uma autarquia denominada “Funrural”.
Com o advento da Constituição Federal/88 unificou-se os regimes de previdência social urbana e rural, extinguindo a autarquia, mas preservando a denominação “Funrural”, como sinônimo da contribuição previdenciária devida pelos produtores rurais.
Em sequência, em 1991 foi editada a legislação regulamentar 8.212/91 (LBPS) que traz em seu bojo as regras de organização e custeio da Previdência Social. Seus termos, foram alterados em 1992, através do artigo 1º da Lei 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II e art. 30, inciso IV da Lei 8.212/911.
Entretanto, o STF decretou a incompatibilidade da redação desta lei com a Constituição Federal, no julgamento do RE 363.8522. A declaração da inconstitucionalidade pautou-se na subversão da hipótese de incidência (fato gerador) dos contribuintes rurais, uma vez que o texto de lei atribuía como base de cálculo “o resultado das operações de venda”, conceito claramente dissociado do art. 195 que, alterado pela EC 20/98, atribuí como base de cálculo das contribuições sociais, o valor de receita ou faturamento.
No julgamento houve ressalva à possibilidade de reinstituição desta contribuição social, mediante nova legislação, desde que cumpridos os ditames constitucionais, alterados pela EC 20/98.
No mesmo julgamento cuidou da sistemática da sub-rogação dos adquirentes de produção rural de pessoa física, previsto no art. 30, IV. A referida regra atribui ao comprador de produção de rural, a obrigação de retenção e recolhimento da contribuição social devida pelo produtor rural pessoa física, ostentando caráter obrigacional, conferindo a terceiro, não integrante da relação jurídica tributária, o ônus de recolhimento dos tributos.
A sub-rogação, por consequência da inconstitucionalidade da contribuição social, foi declarada nula.
A contribuição dos produtores rurais retornou como exação tributária por força das disposições da Lei 10.256/2001, editada em consonância com a EC 20/98.
A legislação vigente é objeto de novo debate perante o STF, pela ADI nº 4395, em que se discute a constitucionalidade da reinstituição da contribuição social do produtor rural instituída e da aplicação da regra de sub-rogação dos adquirentes de produção rural de pessoa física.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DECRETADA NO RE 363.852:
As contribuições sociais são regidas pela Lei 8.212/01, que, sempre enfrentou diversas alterações de redação desde sua publicação. Com a promulgação da EC 20/98, que incluiu as alíneas ao inciso I do art. 195 da CF, a contribuição devida à seguridade social passou a ter como base imponível o valor correspondente a receita/faturamento do empregador/empresa.
Com a alteração do texto Constitucional, a redação que se encontrava em vigência (Lei 8.540/92) foi declarada inconstitucional, por conceber como base de cálculo das contribuições sociais “a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção.
A inconstitucionalidade das disposições legais foi reconhecida pela Suprema Corte, através do Julgamento de Repercussão Geral, RE 363.852, conhecido como “Caso Mata Boi”.
Na oportunidade, o plenário debateu quanto a inconstitucionalidade desta redação, que trazia base de cálculo diversa do previsto na Constituição Federal. Outro ponto destacado no julgamento foi a inconstitucionalidade formal do texto, que através de lei ordinária desobrigava aos contribuintes a retenção e o recolhimento das contribuições socais, conforme disposição do art. 30, IV, que remetia à sistemática da sub-rogação.
Submetido ao plenário, o voto a ser destacado é do Min. Relator Marco Aurélio, que concluiu pela inconstitucionalidade da legislação vigente, acompanhado pelos demais votantes:
Ante esses aspectos, conheço e provejo o recurso interposto para desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por sub-rogação sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção rural de empregadores, pessoas naturais. fornecedores de bovinos para abate, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1ª da Lei n° 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei n° 8.212/91. com redação atualizada até a Lei n° 9.528/97, até que legislação nova. arrimada na Emenda Constitucional n° 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos sucumbência (folha 699).(Grifamos)
O julgamento afastou a incidência da contribuição devida pelo produtor rural e expressamente declarou inconstitucional a regra da sub-rogação dos adquirentes.
A declaração de inconstitucionalidade das exações abarca a redação dada pela lei 9.528/97, ressalvando apenas, a possibilidade de edição de nova legislação, desde que em acordo com EC 20/98.
Posteriormente, no ano de 2001, houve a edição da Lei 10.256/2001, que trouxe nova redação apenas ao artigo 25, reinstituindo a exação devida pelo trabalhador rural.
Sua redação observou as diretrizes dadas pela EC 20/98, relacionadas a base de cálculo das contribuições socais, como o valor de receita/faturamento.
Esta legislação em nada alterou ou substituiu a redação do art. 30, IV, mantendo em vigência a redação da Lei 9.528/97, abrangida pela declaração de inconstitucionalidade.
Entretanto, mesmo com a declaração de inconstitucionalidade, a redação inconstitucional do art. 30, IV da LBPS segue em aplicação pelos Tribunais Inferiores, sob o argumento de que a edição da lei 10.256/01 promoveu a reinstituição apenas da contribuição previdenciária dos produtores rurais, permite, por analogia, a aplicação da regra de sub-rogação.
Por mais que se possa afirmar ser exigível o chamado “Funrural”, o mesmo não se aplica a regra de sub-rogação, que permanece revestida de inconstitucionalidade, por força do julgamento e da ausência de nova disposição.
DA RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA:
A partir da declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo, entende-se que no plano de existência, suas disposições são nulas desde o nascimento. Ora, o que é nulo, nulo efeito produz, conforme narra a antiga parêmia jurídica (quod nullum est nullum efectum producit).
Através do julgamento de repercussão geral, RE 363.852, o STF decretou a inconstitucionalidade da redação da Lei 8.540/92, em dois aspectos: I) inconstitucionalidade material, vez que a base de cálculo prevista diverge da previsão Constitucional; II) inconstitucionalidade formal, posto que a matéria tratada não pode ser legislada por lei ordinária, sendo matéria reservada a disciplina de lei complementar.
A ressalva estabelecida no julgamento se referia unicamente a possibilidade de reedição da contribuição social, desde que observados os ditames trazidos pela EC 20/98.
Em sequência, o legislador infraconstitucional editou a Lei 10.256/01, que cuidou de reinstituir a contribuição devida pelo produtor rural, observando a base de cálculo prevista na Constituição Federal.
Esta nova normativa, entretanto, não trouxe em seu bojo qualquer remissão, direta ou indireta, à regra de sub-rogação. Por consequência lógica, se não houve a reinstituição da substituição tributária, a regra permanece nula por força do julgamento de Repercussão Geral – RE 363.852.
A contenda acerca da contribuição devida pela produtor rural não se finalizou com a edição da nova lei, tendo sido devolvida à Suprema Corte, através da ADI 4395, proposta no distante ano de 2010.
No mérito, a Suprema Corte reconheceu a constitucionalidade da contribuição “Funrural” e da própria Lei 10.256/01, no voto do Min. Relator Gilmar Mendes. Todavia, o Ministro Dias Toffoli apresentou ressalva quanto a inconstitucionalidade da regra de sub-rogação dos adquirentes de produção rural.
O voto do Min. Dias Toffoli é de extrema importância, por trazer em si a preservação do princípio da legalidade tributária. Dedicou tópico específico a esta tese, trazendo à baila o entendimento exarado no RE 363.852, que declarou inconstitucional a regra de sub-rogação.
Destacou que: “Ou seja, até hoje, inexistiu edição de nova lei dispondo a respeito da possibilidade de haver a sub-rogação da contribuição do empregador rural pessoa física cobrada com base na Lei nº 10.256/2001 (ou em outra lei posterior). Até hoje, portanto, inexiste base legal para a sub-rogação dessa contribuição. Sem isso, é inconstitucional a sub-rogação em comento, por violação direta do princípio da legalidade tributária.
A divergência inaugurada foi acompanhada por mais cinco ministros presentes e votantes, fazendo com que a proclamação do resultado fosse postergada para realização em sessão presencial.
Até o momento, tem-se duas premissas no julgamento da ADI 4395: i) a contribuição “Funrural” é constitucional e sua instituição no art. 25 da Lei 8.212/91; II) a regra de sub-rogação não possui disposição normativa vigente, ostentando os termos da redação da Lei 9.528/97, abarcada pela inconstitucionalidade.
À revés deste entendimento, e do voto expresso já proclamado no âmbito da ADI 4395, que está em vias de finalização e proclamação de resultado, nas ações em trâmite tem-se pacificado uma subversão da legalidade tributária, para que a exigência em face aos adquirentes de produção rural, se dê por força da Lei 10.256/01. A qual, repita-se, não remete à regra de sub-rogação.
Decisões proferidas no âmbito do TRF3 e TRF4 com frequência, têm convalidado a regra anteriormente declarada inconstitucional e que, atualmente, carece de previsão legal. Em julgamento Colegiado do TRF3, o fundamento apresentado para a convalidação da exigência por sub-rogação, está na insubsistência de vícios de inconstitucionais, por força de edição da Lei 10.256/01: “com a edição da Lei nº 10.256 /01 não mais subsistem os vícios de inconstitucionalidade apontados pela Excelsa Corte em vista da nova redação dada pela EC nº 20 /98 ao art. 195 da Constituição Federal²”.
O fundamento adotado, entretanto, é uma meia verdade, posto que, a lei que sobreveio à declaração de inconstitucionalidade, Lei 10.256/01, não se debruça quanto à regra de sub-rogação.
Reinstituída a contribuição previdenciária do produtor rural, isto não leva a consequência imediata de reestabelecimento da sistemática de sub-rogação. A exação tributária (contribuição social) e a sub-rogação são institutos diversos, com disposição legal em apartado. Portanto, sanado o vício apenas no tocante a exigência da obrigação tributária e não sobre a sistemática de recolhimento e da sub-rogação.
Se a intenção do legislador infraconstitucional fosse reestabelecer a regra de sub-rogação, o teria feito expressamente. Contudo, subsiste lacuna normativa neste aspecto, não havendo lei que discipline a sub-rogação.
A atuação jurisdicional possibilita que haja a subversão do texto Constitucional, criando uma obrigação tributária, por aplicação analógica do texto de uma lei que sequer remete ao instituto da sub-rogação.
Relativiza-se o princípio da legalidade tributária³, atribuindo obrigação de retenção e recolhimento a terceira pessoa (adquirente), sem que exista embasamento legal para tanto, apoiando-se exclusivamente em uma legislação que não trata, direta ou indiretamente, da sub-rogação de terceiro.
Convém destacar que o entendimento invocado nestes julgamentos não possui força normativa, por disposição expressa no art. 108, §1º do CTN, que obsta a aplicação de analogia para fins criação de obrigação tributária. Inexistindo base normativa para a substituição tributária, pacificou-se a subversão do princípio da legalidade, aplicando analogia para exigência de um tributo, em afronta a expressa vedação no CTN.
Esta é a questão do voto divergente proferido na ADI 4395: inexiste base normativa para a ocorrência da sub-rogação da retenção/recolhimento na pessoa do adquirente, uma vez que, permanece inalterado o art. 30, com redação da lei 9.528/97, outrora declarada inconstitucional.
Outra questão que deve ser elencada, é a inadequação da norma editada. A Constituição Federal é clara ao resguardar a obrigação tributária e a sujeição passiva à regulamentação por meio de lei complementar. A Lei usada como embasamento jurídico à aplicação da regra de sub-rogação, se trata de lei ordinária.
O art. 195 da CF cuida diretamente das contribuições sociais, trazendo novamente em seu bojo a necessidade de legislação complementar. O §4º do referido artigo, ao instituir as fontes de custeio, remete aos termos do art. 154, I que delimina a obrigatoriedade de legislação complementar para regulamentação.
Não apenas pela falta de disposição expressa, havendo vedação a aplicação de analogia da legislação tributária para criação de exação, a lei apontada como fundamento sequer é materialmente adequada.
A aplicação da sistemática da sub-rogação tem ocorrido de forma consequencial, pela declaração da constitucionalidade da contribuição em si, o que difere dos princípios tributárias, que enaltecem a necessidade de lei expressa para exigência de obrigação tributária.
A legalidade tributária é subvertida não apenas em questão à matéria, ou à falta dela, mas também, no aspecto material, vez que a temática é ressalvada a regulamentação através de Lei Complementar, o que não é o caso da Lei 10.256/01.
CONCLUSÃO
Emerge uma tendência de relativização da legalidade, de modo a facilitar a arrecadação e a fiscalização, entretanto, isto não pode permitir a criação de uma obrigação tributária sem a devida base legal, sob pena de violação da legalidade e do texto expresso do CTN.
Isto é o que se verifica em relação as contribuições devidas pelos produtores rurais, ainda que tenha havido a constitucionalização da incidência e dos termos da Lei 10.256/01, isto não pode, por via indireta, culminar na criação de uma responsabilidade de terceiro, com a reimplantação da regra de sub-rogação, sem que haja lei autorizadora, adequada e expressa.
O próprio pleno do Supremo Tribunal Federal reconhece que não há que se falar em subversão da legislação, por extensão dos termos da lei editada, visto que não se trata de uma relação jurídica convencional. Inclui-se, de forma ilegal, pois sem previsão expressa em lei, a figura de um terceiro, atribuindo-lhe responsabilidade de retenção e recolhimento em uma relação tributária da qual não participa.
O entendimento dos Tribunais Inferiores acaba por demonstrar a tendência a superação dos princípios constitucionais, notadamente o da legalidade, convalidando a aplicação da sistemática de sub-rogação em afronta a legalidade e a capacidade contributiva.
Estas considerações foram delimitadas pelo Supremo Tribunal Federal, o qual projeta o reconhecimento da inconstitucionalidade da regra de sub-rogação através do Julgamento da ADI 4395. A inconstitucionalidade da regra de sub-rogação é flagrante em dois aspectos: inconstitucionalidade material, por ausência de texto de lei; inconstitucionalidade formal, vez que a normativa que tenta introduzi-la é materialmente inadequada (não é legislação complementar).
A relativação da legalidade pelas decisões proferidas no âmbito dos Tribunais Regionais Federais cria uma tendência a permitir a atuação inconstitucional e a atribuição de uma responsabilidade de terceiro, sem base legal. O direito a arrecadação Estatal, não pode ultrapassar os direitos individuais, atribuindo responsabilidade, obrigação de retenção e recolhimento de ordem tributária, sem a devida base normativa.
Confira também em: https://www.migalhas.com.br/depeso/420054/legalidade-tributaria-e-sub-rogacao-no-funrural–adin-4395
1 Art. 12. São segurados obrigatórios da previdência social as seguintes pessoas físicas: V – como equiparado a trabalhador autônomo, além dos casos previstos em legislação específica; VII – como segurado especial: o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam essas atividades individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com auxílio eventual de terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de quatorze anos ou a eles equiparados, desde que trabalhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo. Art. 25. Contribui com 3% (três por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção o segurado especial referido no inciso VII do art. 12. I – 2% (dois por cento), no caso da pessoa física, e 2.2% (dois inteiros e dois décimos por cento), no caso do segurado especial, da receita bruta da comercialização da sua produção; (Redação dada pela lei 8.861, de 1994). II um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento de complementação das prestações por acidente de trabalho.
Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas IV – o adquirente, o consignatário ou a cooperativa ficam sub-rogados nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea a do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta lei, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento; 2 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363852_voto.pdf
2 TRF-3 – APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA: ApelRemNec 50010848120184036116 SP
3 Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
Por: Nathalia Damião Fantinatti Carvalho
Bacharelanda em Direito pela ITE-Bauru e Auxiliar Jurídico na Oliveira e Olivi Advogados Associados.