Business purpose e planejamento tributário: direito à economia de impostos

Muito embora se diga que a teoria do propósito negocial nasceu a priori em doutrinas do Direito suíço, historicamente o termo business purpose ganhou notoriedade a partir do julgamento do “caso Gregory vs. Helvering”, em 1935, pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

A peticionante, Evelyn Gregory, era proprietária de todas as ações da empresa United Mortgage Corporation, a qual detinha mil ações da Monitor Securities Corporation. Ocorre que o fato de as ações estarem com um valor de mercado que ultrapassava o valor residual fez com que a contribuinte desejasse vender todas elas para obter lucro individual.

Havia a possibilidade de a senhora Gregory transferir as mil quotas a si mesma e depois proceder com a alienação, mas essa escolha resultaria na incidência de tributos sobre os dividendos. Sendo assim, para se isentar da tributação, uma verdadeira reorganização societária foi realizada sob as leis do estado de Delaware e a Averill Corporation foi constituída, oportunidade em que as ações foram transferidas para a titularidade da contribuinte por meio de uma terceira empresa.

Ao transferir as ações que possuía em nome da Monitor Securities Corporation para a empresa Averill Corporation e, posteriormente, distribuindo os ativos desta para si, a senhora Gregory se esquivou da incidência da exação.

O interessante é que, ainda que a contribuinte não tenha infringido qualquer dispositivo da legislação vigente, o Fisco norte-americano — liderado à época pelo comissário da Receita Federal Guy Tresillian Helvering — entendeu que a operação empresarial deveria ser desconsiderada porque a sociedade Averill tinha sido instituída apenas para a transferência das quotas, sem qualquer propósito negocial (business purpose).

Em que pese a senhora Gregory tenha sido vitoriosa perante o Tribunal Fiscal Distrital, a corte de apelação reverteu o julgamento e o caso, enfim, chegou à Suprema Corte, que confirmou a decisão desfavorável [1] à contribuinte por compreender que o direito à redução de impostos, ou ao planejamento tributário, deveria se harmonizar não apenas com os ditames legais, mas também com a intenção do legislador — aqui leia-se: propósito negocial legítimo.

Após julgado pela Suprema Corte dos EUA, o “caso Gregory vs. Helvering” tornou-se um verdadeiro leading case da interpretação econômica do Direito Tributário, levando a teoria do propósito negocial (business purpose) a se tornar uma norma antielisão.

Não obstante o entendimento jurisprudencial norte-americano seja esse, o cenário brasileiro traz uma perspectiva diametralmente oposta. Pelo menos é o que mostram alguns julgados do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, mais especificamente da Câmara Superior de Recursos Fiscais.

Na ADI 2.446, por exemplo, a ministra Cármen Lúcia entendeu que “a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada” [2].

Apesar de ainda se encontrar pendente de julgamento, o resultado da ADI pouco contribui para a discussão do tema. Compreender a linha de interpretação, bem como os motivos, fatos e fundamentos utilizados para se chegar à referida conclusão é o que importa. E não é preciso demasiado esforço para notar que a teoria do propósito negocial não é adotada uniformemente pela jurisprudência do STF, tampouco do Carf.

No Acórdão nº 9101-005.876, o conselheiro Caio Cesar Nader Quintella — designado para redigir o voto vencedor —, reconhece que “(…) a ausência de causa ou, mais especificamente, ausência de propósito negocial, não dá margem ao reconhecimento de simulação no Direito brasileiro”.

Há quem defenda a aplicação da doutrina do business purpose no Brasil, entretanto nunca houve sua positivação no ordenamento jurídico pátrio, malogradas tentativas. Quanto a isso, o Fisco parece não se preocupar, já que, utilizando o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional como base legal, desconsidera planejamentos tributários feitos de forma lícita.

Como paradoxo, na República dos Bruzundangas com sistema jurídico de civil law, o que restou decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos no “caso Gregory vs. Helvering” deve(ria) servir como paradigma a ser seguido pela Receita Federal: é preciso que o direito à redução de impostos se harmonize não apenas com os ditames legais, mas também com a intenção do legislador.

Porém, a realidade das legislações infra e constitucional no Brasil é outra. O supracitado artigo 116, parágrafo único, do CTN abarca uma insuficiência de densidade normativa por tratar-se de norma de eficácia limitada, ou seja, é meramente declaratória, depende de regulamentação através de lei ordinária para ser aplicado na prática.

No âmbito da interpretação-aplicação do Direito, é imprescindível que o processo hermenêutico dos modais deônticos que circundam o caso concreto seja realizado de forma a identificar, em cada norma, a sua real razão de ser, que deve obrigatoriamente estar em harmonia com o texto constitucional.

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 salvaguarda o princípio da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV) e da liberdade econômica (artigo 5º, inciso XIII e artigo 170, parágrafo único) — fundamentos da República Federativa do Brasil —, a fim de proporcionar o desenvolvimento de negócios e atividades profissionais da maneira mais eficiente possível e com mínima interferência estatal.

Por corolário, não há como interpretar o dispositivo do CTN de forma isolada e literal, ou, pior, de forma subjetiva. Sua interpretação deve ser sistemática, teleológica e manter respeito, em primeiro lugar, às normas constitucionais. O voto-vista [3] proferido pelo ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Napoleão Nunes Maia Filho, no julgamento do Recurso Especial 1.286.258/SP ilustra bem a situação referente à necessidade de se contemplar a liberdade econômica e a livre iniciativa nas relações privadas.

Quanto ao direito à economia de impostos em terrae brasilis, o planejamento tributário continua sendo o instrumento mais eficaz (e lícito, diga-se de passagem) para buscar a forma menos onerosa possível, do ponto de vista fiscal, de desenvolvimento e sobrevivência dos contribuintes — sejam pessoas físicas, sejam jurídicas. O propósito negocial, por sua vez, não passa de quimera jurídica por lhe faltarem requisitos mínimos de legalidade para sua efetiva aplicação.

Ora, em um país frequentemente assolado por crises econômicas, onde a carga tributária total equivale a 32,9% da renda doméstica total [4], não é de se surpreender que, como diria Pablo Andrez Pinheiro Gubert [5], “(…) o empresário e o cidadão comum seguem como podem, geralmente sem qualquer ajuda do Estado ou, o que é pior, contra ele: — Cada um por si e o Fisco contra todos!”.

 

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[1] https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/rlp_precedente-us-sc-gregory-v-helvering-1935.pdf.

[2] https://www.conjur.com.br/dl/adi-2446-voto-carmen-lucia.pdf.

[3] Cedo à polêmica tentação de dizer que este assunto é altamente desafiador, pois cuida de um dos mais delicados aspectos do sistema capitalista, qual seja, o de garantir as condições operacionais dos agentes econômicos privados (as empresas), em regime de não intervenção estatal e, ao mesmo tempo limitar — mas sem destruir — os pilares da livre concorrência; essa tarefa, como já se vê, diz respeito ao controle do modo como se realiza o processo estatal da intervenção, quando este é legítimo.

[4] https://www.heritage.org/index/country/brazil#government-size.

[5] GUBERT, Pablo Andrez Pinheiro. Planejamento tributário. Análise jurídica e ética. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2003. p. 33.

 

 

Por: Raphaela Conte, Conjur.
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