Justiça Penal Negocial / Penal Econômico e Empresarial

Na última década, o fenômeno da globalização e suas consequências têm sido um dos temas mais debatidos na busca da condição humana contemporânea. Tendo se identificado que é um acontecimento histórico real e significativo.

Contudo, à medida que as distâncias contraem, amplia-se a velocidade referente às interações sociais, de modo que crises e acontecimentos outrora distantes passam a ter um impacto mundial quase que imediato, gerando novas animosidades e conflitos, o que implica em um tempo menor de reação para os responsáveis pela tomada de decisões.

Diante desse cenário a sociedade passa a dar grande importância a uma série de condutas e atividades até então desprezadas, mas que se percebeu poderiam ofender e colocar em risco um novo bem jurídico até então pouco observado.

Descobre-se uma nova delinquência que pode produzir resultados notadamente lesivos porque relacionada a interesses econômicos, que transcendem direitos individuais, atingindo, agora, direitos coletivos ou supraindividuais.

Assim, desde que o sociólogo alemão Ulrich Beck[1] em sua obra Risikofesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne denunciou uma “sociedade de riscos” como efeito sociológico da globalização e a proliferação de leis no sistema penal com base nessas novas demandas sociais, notou-se claramente um expansionismo do direito penal com a tipificação de condutas até então ignoradas ou eventualmente relegadas à outras áreas do direito.

[1] BECK, Ulrich, Sociedade de risco: Rumo a uma Outra Modernidade, Tradução Sebastião Nascimento, São Paulo, Editora 34, 2011.

Assim, ao direito penal da modernidade foi atribuída uma nova missão impossível de ser correspondida, porque impossível alcançar na esfera punitiva tradicional uma resposta capaz de dar conta dessa nova demanda que ameaça a ordem social globalizada.

Desse modo, surge um novo modo de atuar, pensado como Justiça Penal Negocial, no qual se cria um sistema onde se busca concretizar o poder punitivo estatal e a proteção de bens jurídicos de modo mais rápido, eficaz e menos oneroso por meio do estímulo da não resistência do acusado à hipótese da acusação com o oferecimento, em contrapartida, da redução da pena. Tem-se, assim, um modelo de simplificação procedimental no qual se busca concretizar a Justiça Penal por meio do campo Negocial.

No Brasil tais mecanismos em um primeiro momento surgem timidamente com a criação dos Juizados Especiais Criminais, introduzidos pela Lei 9.099/1995, e, mais recentemente, de modo mais expansivo, com a criação do acordo de não persecução penal, inserido no art. 28-A, do Código de Processo Penal, pelo propalado pacote anticrime (Lei Federal 13.964/2019).

O referido acordo de não persecução penal contemplou então todas as infrações penais praticadas sem violência ou grave ameaça cuja pena mínima seja inferior a 4 (quatro) anos. Assim, a área de aplicação do referido instituto negocial é imensa, sendo possível dimensionar que seja cabível em aproximadamente 70% das infrações penais, notadamente àquelas de cariz econômico empresarial.

Contudo, em terras nacionais, diferentemente do que ocorreu em outros países, frustrando, inclusive, muitos dos juristas entusiastas da Justiça Penal Negocial, na prática o que se vê é um profundo esvaziamento do instituto, notadamente por uma jurisprudência tradicionalista, pautada em um pensamento conservador dos julgadores, do próprio Ministério Público, mas, também de uma série de doutrinadores que tem receio que uma ampliação do seu escopo de aplicação possa ferir direitos e garantias individuais dos acusados em geral.

Assim, do lado da jurisprudência e do Ministério Público se consolidou entendimento consignando que o acordo constitui direito subjetivo do imputado que possa ser firmado contra a vontade do Ministério Público, não podendo, portanto, o Poder Judiciário impor-lhes a obrigação de ofertar acordo em âmbito penal. Já pelo lado da doutrina ficou assentada a compreensão de que o Judiciário precisa exercer controle e limitação sobre o acordo, verificando, inclusive, a existência (ou não) de justa causa para a persecução penal, em respeito ao devido processo legal.

Diante dessas compreensões, o acordo de não persecução penal foi relegado ao plano da suspensão condicional do processo, sendo comum que o Ministério Público não o apresente ou simplesmente exiba uma proposta cerrada, sem, portanto, qualquer margem para negociação.

Desse modo, aqueles que imaginavam o acordo de não persecução penal nos moldes do plea bargaining do common law norte americano, na prática estão observando sua utilização como uma espécie de proposta de suspensão do processo, com condições inegociáveis, sem qualquer margem para discussão, com um reduzidíssimo campo de aplicação. Talvez essa realidade esteja acoplada à série de problemas estruturais a que o Poder Judiciário e o próprio Ministério Público estão acometidos, não se sabe. Mas é fato que o espaço para negociar com o órgão de acusação é limitadíssimo.

É evidente que qualquer instituto de direito penal e processual penal deve ter seu alcance filtrado pelas garantias constitucionais, notadamente pelo compromisso inarredável de redução de danos e limitação do poder estatal, mas um pequeno esforço das partes processuais e do Poder Judiciário, sem se afastar de suas premissas fundamentais, poderia, sem dúvida, alargar a aplicação do acordo de não persecução penal, consolidando-o com uma verdadeira ferramenta de política criminal despenalizadora.

 

 

Por: Carlos Eduardo Delmondi.

Advogado, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Mackenzie e Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.