O Tema 796 do STF e o leading case McCulloch v. Maryland

O Tema 796 do STF e o leading case McCulloch v. Maryland

Em meados de 2020, o STF (Supremo Tribunal Federal) discutiu o alcance da imunidade tributária do ITBI (Imposto sobre a transmissão de bens imóveis), prevista no artigo 156, §2º, inciso I, da Constituição de 1988, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, nas hipóteses em que o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado (Tema 796).

No âmbito do Recurso Extraordinário nº 796.376/SC, a Corte entendeu que a imunidade em relação ao ITBI não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado. Ou seja, incidirá a tributação pelo imposto sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado.

O ministro Marco Aurélio, nomeado como relator, votou pela aplicação da imunidade ainda que o valor total exceda o limite do capital social, e a partir disto, fundamentou sua decisão na premissa de que “a razão de ser da imunidade — e nada surge sem causa, princípio lógico e racional do determinismo — é facilitar o trânsito jurídico de bens, considerado o ganho social decorrente do desenvolvimento nacional, objetivo fundamental da República”.

Voto vencido, no entanto. Abrindo a divergência através do qual foi o voto vencedor, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que “ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imóvel cuja destinação escapa da finalidade da norma”.

Com o máximo respeito, entendemos que a decisão deve ser revista, sobretudo quando analisada sob a ótica societária, contábil e tributária, e pela clareza da imunidade prevista na Constituição.

Ótica societária

Pode-se dizer que é comum os sócios/acionistas optarem pela integralização do capital social das empresas mediante a incorporação, ou a transferência, de bens imóveis, alicerçados no artigo 7 da Lei nº 6.404/1976 e artigo 997, inciso III, do Código Civil, por dois motivos óbvios: 1) a não incidência de ITBI; e 2) para atribuir utilidade a bens de alto valor nominal e baixa liquidez.

Assim, quando da constituição e/ou quando do aumento de capital da sociedade empresária, seus fundadores podem fixar, no contrato social, o valor nominal das quotas/ações em que se dividirá o capital social, podendo fixar, inclusive, participações com valores superiores ao nominal ou até mesmo, sem valor nominal, com parcela destinada à formação de reserva de capital, sendo essa, também denominada de ágio de subscrição, como bem dispõe o artigo 14 da Lei de Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976).

Considerando que o capital social é  o conjunto de recursos entregues pelos próprios sócios/acionistas em contrapartida à participação societária, a eventual formação de reserva decorre, muitas vezes, da opção realizada, no contrato ou estatuto social, de estipular valores capazes de suprir o valor dos bens dados em pagamento, tanto pela possibilidade de uma futura transferência de quotas, quanto pela cautela que se deve ter no início de uma investida empresarial ou, ainda, pelo fato de a pessoa jurídica em questão se tratar de uma empresa de pequeno ou médio porte.

Ótica contábil

É justamente por esta razão que a diferença entre o preço do imóvel e a quantia a ser integralizada, ainda que seja contabilizada como reserva de capital, deve(ria) ser imune. Ora, as reservas podem ser caracterizadas como reforço de capital recebidos de acionistas ou de terceiros, destinados a aprovisionar a conta do patrimônio líquido da sociedade, como leciona o artigo 182, §1º, alíneas a e b, da Lei nº 6.404/1976.

Apesar de não compor o capital social, uma vez constituída, a reserva de capital também pode vir a ser utilizada para incorporá-lo [1], já que representa fundo próprio, ou valor que lhe pertence, permitindo também ampliá-lo, além de possuir o desígnio precípuo de manter a saúde financeira da empresa, já que podem ser utilizadas para absorver eventuais prejuízos, resgate ou reembolso de compra de ações e/ou servir como fonte de capital para expansão do empreendimento.

Portanto, ainda que o capital social e a reserva de capital sejam institutos distintos e possuam diferentes funções dentro dos balanços contábeis, quando analisados a partir dos vieses econômico e negocial, ambos passam a ter natureza semelhante: investimento empresarial.

Ótica tributária

A incidência do ITBI, previsto no artigo 156, inciso II, da CF, pressupõe a transmissão “intervivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.

Consequentemente, quando a Constituição dispõe, de forma expressa, que não incide imposto sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, a interpretação que deve ser feita do inciso I, §2º, do artigo 156, é de que a imunização abarca tanto os casos em que o valor dos bens integralizados excede o montante do capital social, quanto os casos em que este é alcançado. Até porque tudo aquilo que não é proibido por lei, é permitido (artigo 5º, inciso II, da CF).

E no caso de norma imunizante, esta deve ser, em sua autoaplicabilidade, interpretada de forma a prestigiar o que o Constituinte deixou como legado e, inclusive, como cláusula pétrea (artigo 60, §4º, inciso IV), principalmente nos casos que envolvem limitações ao poder de tributar. Isso, pois, as imunidades são uma das formas de se atingir as finalidades extrafiscais da tributação [2], como leciona Paulo de Barros: “a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso” [3].

Ocorre que a tese fixada pelo Supremo trouxe inúmeras consequências ao mundo pragmático, entre elas: 1) afetou planejamentos sucessórios, patrimoniais e tributários; 2) chancelou a cobrança do ITBI sobre um ato não oneroso, contrariando o texto constitucional e gerando desestimulo à livre iniciativa; 3) possibilitou que as empresas, ao recolherem imposto sobre o excedente quando da integralização, pleiteassem a restituição desses pagamentos perante o Poder Judiciário no momento em que incorporassem o ágio ao capital social; 4) fez seguir a necessidade da criação de lei ordinária municipal que preveja a incidência do ITBI nos termos fixados no julgado, à luz do princípio da legalidade.

Mas o que, afinal, o tema 796 tem a ver com o leading case McCulloch v. Maryland?

Em uma rápida e sucinta digressão ao ano de 1819, chegou ao julgo da Suprema Corte dos Estados Unidos uma execução fiscal ajuizada pelo estado de Maryland, em que se exigia um tributo sobre títulos de crédito emitidos pelo Segundo Banco Nacional (instituição controlada pela União) juntamente com uma penalidade de US$ 100, o que um funcionário daquela filial, James McCulloch, se recusava a pagar.

Muito embora o judiciário estadual tenha sido unânime em entender que McCulloch deveria ter pagado a exação cobrada pelo estado, o presidente da Suprema Corte à época, John Marshall, redigiu a decisão do tribunal, que julgou a causa de forma favorável ao bancário, declarando a inconstitucionalidade do tributo e da penalidade cobrada pelo estado de Maryland, sob o fundamento de que “an unlimited power to tax involves, necessarily, a power to destroy; because there is a limit beyond which no institution and no property can bear taxation” [4].

Não à toa, o leading case norte-americano é tido como um dos julgados mais importantes da Suprema Corte em matéria tributária e constitucional até hoje, já que introduziu ao cenário jurídico mundial a teoria dos poderes implícitos e a imunidade tributária.

Imunidade, esta, que foi suprimida pela decisão do Tema 796. Por fim, Marshall tinha razão. Um poder ilimitado de tributar envolve, necessariamente, o poder de destruir. É por isso que o direito constitucional fundamental da imunidade tributária é algo tão caro aos contribuintes, sobretudo no Brasil, onde arcam com uma grande carga tributária.

[1] MARTINS, Eliseu. Manual da Contabilidade Societária: aplicável a todas as sociedades. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 417.

[2] Assim como ocorre com as isenções, as alterações de alíquotas e a seletividade, o legislador decide tornar imune determinado segmento ou atividade objetivando incentivá-los, já que, embora a priori a imunidade represente uma “perda” de receita, a médio e longo prazo ela tende a compensar o que deixou de ser arrecadado.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 260/261.

[4] McCulloch v. Maryland 17 U.S. 316, 431 (1819) (Marshall).

 

Por: Larissa Parra, Pedro Zago e Raphaela Conte

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