Opinião: Eis o pragmatismo de cunho consequencialista! Ou subjetivista?

E mais uma vez a realidade da Suprema Corte brasileira faz Shakespeare envelhecer demasiadamente bem. “Medida por Medida”, ainda que escrita séculos atrás, continua sendo deveras paradigmática levando em consideração o modo como a modulação de efeitos está sendo vista pelos olhos do guardião da Constituição Federal de 1988.

É possível verificar com clareza, ao desenrolar da peça shakesperiana, dois modelos de decisão e/ou juiz: Ângelo I (aquele que é escravo da lei, quando diz “A lei, não eu, condena o seu irmão”) e Ângelo II (aquele que é dono da lei, quando afirma à Isabela que “se o amasse em retorno, seu irmão seria poupado”[1].

Através de um mesmo personagem, o Bardo explicita dois extremos: de um lado, Ângelo I com seu objetivismo e, de outro, Ângelo II com seu subjetivismo. É a literatura dizendo o direito, o direito sendo interpretado pela literatura e como nem sempre devemos seguir os romances — exceto o dworkiniano [2].

As últimas inconstitucionalidades declaradas pelo Supremo Tribunal Federal demonstram que, quando o assunto é tributário, o subjetivismo ganha espaço e a Corte parece personificar-se na figura de Ângelo II ao modular os efeitos de suas decisões com motivações deveras subjetivas.

Tanto isso é verdade que, das 21 modulações feitas desde 2007, metade ocorreu apenas em 2021 [3], tendo a maioria [4] a mesma motivação: prejuízo ao erário.

Nos leading cases RE 574.706 e RE 1.287.019, por exemplo, a modulação foi aplicada levando em conta as consequências que as decisões gerariam, como “indesejados impactos financeiros, além de dificuldades para o planejamento orçamentário federal” em razão da “pandemia do coronavírus”.

Eis o pragmatismo de cunho consequencialista! Ou subjetivista?

Novos julgados, velhos problemas. Está-se, aqui, a falar de um instituto importado do direito norte-americano que está sendo aplicado pelo STF, através de sua “adaptação” ao direito brasileiro (civil law), sob argumentos metajurídicos.

Seja ou não seja a pandemia uma motivação relevante para que a questão orçamentária tenha ganhado peso como fundamento das modulações, esta ainda não parece se enquadrar nos rígidos requisitos do artigo 27 da Lei 9.868/99 — quórum de maioria qualificada e razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Embora realmente haja uma zona de penumbra nos conceitos de segurança jurídica e de excepcional interesse social, os termos não são sinônimos de interesse público, tampouco abrem margem para discricionariedade judicial, já que a interpretação-aplicação da norma continua tendo os seus critérios.

Não é óbvio que a motivação não pode se pautar exclusivamente em argumentos financeiros, sob pena de cair-se na armadilha subjetivista? Não é óbvio que “quanto mais pesada for a intervenção em um direito fundamental, tanto maior terá que ser a certeza das premissas nas quais essa intervenção se baseia?” [5].

Com efeito, a alegação ad terrorem de prejuízo ao erário envolve a questão quantitativa do impacto fiscal na prática. Em nenhum dos casos modulados pelo STF houve demonstração do risco alegado, apenas presunções — que, segundo a própria Receita Federal, não são confiáveis [6].

Essa costumava ser uma preocupação antigamente, conforme se nota do RE 718.874/RS. Na época, o Ministro Lewandowski afirmou que os números oferecidos à Corte “à primeira vista, são e eram aterrorizantes”, mas “não tem qualquer base empírica”. A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, assentou que “diante da agressão a um direito do contribuinte, […] nós fazemos direito e não fazemos milagres“.

Há quase uma década, a modulação era vista como um “estímulo à edição de leis à margem da Carta da República, visando à feitura de caixa, com o enriquecimento ilícito por parte do Estado — gênero —, em detrimento dos contribuintes no que já arcam com grande carga tributária” (AI 531.125).

É interessante notar como a jurisprudência do Supremo mudou com o passar dos anos, tornando-se contraditória por quebrar o “romance em cadeia” [7] construído ao longo do tempo.

No julgamento do RE 574.706/PR, o ministro Fux destacou que “a sociedade espera que a Suprema Corte esteja à altura dos tempos atuais, dando resposta […] ao enfrentamento do déficit fiscal”. Porém, pergunta-se: qual sociedade? [8]. Um dos principais papéis do STF, no íntimo do controle de constitucionalidade, não é ser contramajoritário, afinal? Ademais, de qual déficit fiscal se fala?

A Receita Federal divulgou o resultado da arrecadação total de 2021 que alcançou R$1,878 trilhão, representando o melhor desempenho desde 1995 [9].

Apesar das diversas declarações de inconstitucionalidade que geraram o resgate de bilhões no ano passado, o Estado arrecadou R$1,878 trilhão. Será que, ainda assim, a Corte continuará a usar o mesmo fundamento consequencialista (ou subjetivista?) para modular os efeitos de suas decisões?

Dworkin já advertia: “os juízes devem levar em consideração as consequências de suas decisões, mas eles só podem fazê-lo na medida em que forem guiados por princípios inseridos no direito como um todo, princípios que ajudem a decidir quais consequências são pertinentes e como se deve avaliá-las, e não por suas preferências pessoais e políticas” [10].

Ora, de nada adianta levar em conta as consequências que as decisões, sob o prisma econômico, podem ter para a prática, com fundamento no “excepcional interesse social” — que parece não ser mais tão excepcional assim —, se esquece-se de que não são apenas leis e atos normativos que estão em jogo, mas direitos fundamentais de incontáveis contribuintes.

É aí que Dworkin aparece outra vez: não é exatamente nesta hora que os direitos fundamentais dos contribuintes deve(ria)m ser invocados como trunfos contra a maioria? [11]

Não se nega a existência de um possível interesse social em relação às contas públicas, haja vista a destinação constitucional da arrecadação, entretanto não parece legítimo proteger a priori o interesse de quem gerou a inconstitucionalidade. É o Estado (stricto sensu) que deve ser protegido ou a sociedade como um todo, sobretudo as empresas, principais vítimas da instituição de um tributo em desacordo com a Constituição?

Como defende o professor Hugo de Brito Machado Segundo, “é preciso abandonar a ideia de que apenas quando entra nos cofres públicos a riqueza produzida pela sociedade passa a existir ou ter utilidade. Às vezes é mesmo o contrário que acontece” [12]. As modulações podem ser mais nocivas à economia do que a própria declaração de inconstitucionalidade que permite a restituição de tributos [13].

Muito embora não faça milagres, como advertiu a ministra Cármen Lúcia, seria interessante que o STF voltasse a investir nos romances em cadeia, em nome do, tão invocado, princípio da segurança jurídica.

 

[1] CONTE, Raphaela. Direito e Literatura: o que Shakespeare tem a dizer sobre o embate “objetivismo” — “subjetivismo”.  https://www.conic-semesp.org.br/anais/files/2020/trabalho-1000006490.pdf

[2] Ronald Dworkin desenvolveu a metáfora do chamado “romance em cadeia” a partir de uma comparação da atividade judicial com um exercício literário: “Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, […]”. (DOWRKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999).

[3] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/06/02/stf-podera-limitar-o-impacto-bilionario-de-sete-disputas.ghtml

[4] Por exemplo: RE 574.706, RE 1.287.019 e ADI 5.469, RE 714.139, RE 851.108.

[5] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

[6] “[…], este documento que acompanha a peça orçamentária no processo legislativo não possui o condão de […] ser utilizado como referência para aferir precisamente o efeito de eventuais decisões desfavoráveis ao Fisco”. PISCITELLI, Tathiane; VASCONCELOS, Breno Ferreira Martins; e MATTHIESEN, Maria Raphaela Dadona. ICMS na base do PIS/COFINS e a modulação de efeitos da decisão do STF: o risco fiscal e a reconstrução de um argumento. Revista de Direito Tributário Contemporâneo v. 9. São Paulo: RT, 2017, p. 17-48.

[7] DOWRKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[8] “O álibi da voz das ruas pode ser um componente perigoso, portanto, para quem tem o compromisso de zelar pela Constituição https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/06/02/stf-podera-limitar-o-impacto-bilionario-de-sete-disputas.ghtml até porque, em certas situações, a Constituição tem a função de defender o povo de si mesmo. Mas para além da usurpação de funções, o mecanismo traz ainda um problema de difícil resposta, que é o de saber, efetivamente, o que as ruas estão dizendo”. SEMER, Marcelo. O dono das ruas. Cult, [S. l.] 3 set. 2018. https://revistacult.uol.com.br/home/luis-roberto-barroso-o-dono-das-ruas/?fbclid=IwAR1nDw8CbMjR65j693_WEXMdaQs4Cg7T45gA1bFOu_Qz1fkvlj 95j HABHbY.

[9] aqui

[10] DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

[11] “A metáfora dos trunfos tem a sua cunhagem em Dworkin, para quem o direito como trunfo significa que as posições jurídicas individuais […] funcionam como trunfos […] contra qualquer pretensão estatal em impor ao indivíduo restrições de sua liberdade […] que, por qualquer razão, o Estado considere como merecedores de superior consideração”. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: Trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

[12] aqui

[13] O ministro Fux afirmou no RE 574.706/PR que: “O princípio da segurança jurídica hoje é um cânone pétreo constitucional. […]. A segurança jurídica hoje, por meio da jurisprudência, é um fator muito relevante de investimento do capital estrangeiro no país”.

 

Por: Raphaela Conte, Conjur.
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